O diretor artístico da Osesp
narra o desafio de traduzir a obra clássica de Beethoven para comemoração dos
250 anos de nascimento do compositor. E fala sobre a importância duradoura dos
ideais que a obra carrega
Traduzir a ‘Ode à Alegria’?
Parece loucura. E seria, mesmo, não fossem as circunstâncias.
Em meados de 2018, o Carnegie
Hall, celebrada casa de espetáculos de Nova York, começou a planejar um projeto
internacional, em parceria com Marin Alsop, regente titular da Osesp (Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo).
Ao longo de 2020, quando se
comemoram os 250 anos de nascimento de Beethoven (1770-1827), Marin vai reger a
Nona Sinfonia pelos cinco continentes; começando, na verdade, agora em
dezembro, em São Paulo, passando depois por EUA, África do Sul, China, Áustria,
Nova Zelândia, Austrália e Inglaterra, para terminar no próprio Carnegie Hall.
Em cada lugar, a Nona será ouvida em diálogo com a cultura do respectivo país e
tendo a ‘Ode à Alegria’ — cantada por solistas e coro no quarto movimento — recriada
na língua local.
Batizado de ‘All Together: A
Global Ode to Joy’ (‘Todos Juntos: Uma Ode Global à Alegria’), o projeto quer
tornar a Nona Sinfonia acessível ao maior número possível de pessoas, sem
alterar a partitura, mas criando contextos novos para a audição.
Nenhuma obra do repertório
clássico é mais conhecida que ela. Paradoxalmente, não serão mais que uma
parcela das dezenas de milhões de ouvintes os que de fato podem acompanhar em
alemão o poema de Schiller (1759-1805), crucial para o entendimento da Nona.
Beethoven
mudou a noção da história da música que, depois dele – principalmente por causa
dele – passa a se organizar como um cânone de grandes autores do passado.
Um desafio duplo, portanto.
Antes de mais nada, definir o que, de outras músicas, faria sentido entremeado
à sinfonia. A primeira versão da ‘Ode’ é de 1795. Em conjunto com a música de
Beethoven (de 1824), leva ao limite ideais iluministas de liberdade, igualdade
e fraternidade, que inspiram o mundo democrático moderno. Não era esse o mundo
em que eles viviam. Tampouco o mundo por aqui, marcado pela tráfico de escravos
— o Brasil foi a última nação das Américas a abolir a escravidão, em 1888.
Situar a Nona em contexto brasileiro significa, portanto, encarar a questão,
elegendo fragmentos capazes de compor outro horizonte.
Nossa Nona vai começar com um
canto de capoeira baiano, ‘Navio Negreiro’, cantado pelo coro. Entre o primeiro
e o segundo movimento, virão trechos de ‘Cabinda: Nós Somos Pretos’, peça
sinfônica encomendada há quatro anos ao compositor baiano Paulo Costa Lima. Já
para o intervalo entre o segundo e o terceiro, Clarice Assad compôs um adágio
inspirado em temas de ‘Alegria, Alegria’ (1967), de outro compositor baiano,
Caetano Veloso — antológica canção de reação ao arbítrio, em plena ditadura
militar.
A mesma canção também é
motivo de duas alusões na ‘Ode à Alegria’ em português, em minha tradução,
feita na esteira de várias versões para canções de Schubert e Schumann, mas em
outra escala e num espírito um tanto diferente. Dois exemplos devem bastar para
dar uma ideia do que entra em jogo.
A ‘Ode’ de Schiller começa
com esses versos famosos: ‘Freude, schöner Götterfunken,/ Tochter aus Elysium’.
Em tradução literal: ‘Alegria, bela fagulha divina,/ Filha do Elísio’.
Para além das questões de
métrica e rima, que permeiam todo o poema, um exemplo desses deixa evidente o
risco de se fazer uma tradução ao pé da letra, que poderia soar não só
anacrônica, mas francamente ridícula. A tentação, por outro lado, de imitar um
autor romântico, como o Castro Alves de ‘Navio Negreiro’ (1869), por exemplo —
poema que a seu modo conversa com a ‘Ode’ de Schiller, e que teria tudo a ver
com esta Nona brasileira —, também tinha de ser deixada de lado, sob o mesmo
risco.
A tradução precisa seguir
minuciosamente os contornos da melodia. Sempre lembrando, também, o desejo de
falar com uma plateia do nosso tempo, o resultado reforça a vertente mais
moderna do pensamento do próprio Beethoven: ‘Alegria, alegria/ Filha do divino
em nós’. Diferente nos termos, próximo na forma, fiel ao espírito – mais fiel
até, quem sabe, que o próprio original, para um leitor nos dias de hoje. E boa
de cantar.
Outro exemplo, sem sair da
primeira estrofe. ‘Alle Menschen werden Brüder’, diz Schiller: ‘odos os homens
se tornam irmãos’. A questão que pega é a incômoda sinonímia entre ‘homens’ e ‘humanidade’’,
impossível de repetir sem mais nem menos, numa versão que busca aproximar a
Nona de uma plateia atual.
Ficaram assim os quatro últimos versos da estrofe: ‘Teu
apelo vê reunido/ O que era dividido em vão,/ Homens e mulheres, juntos,/ São
agora irmã e irmão’. Não seria isso o que diriam Schiller e Beethoven, hoje,
defensores por excelência da liberdade e da igualdade?
A partir de agora e ao longo
de todo o ano que vem, aqui como ao redor do mundo, a obra de Beethoven será
ouvida nas mais variadas circunstâncias.
Nunca será demais escutar as
sinfonias, os concertos, as sonatas, os quartetos de cordas, as obras corais, a
ópera ‘Fidelio’. Beethoven mudou a noção da história da música, que depois dele
— principalmente por causa dele — passa a se organizar como um cânone de
grandes autores do passado. Mudou a ideia do que pode ou deve ser um concerto,
experiência comparável à leitura de textos críticos ou filosóficos. Mudou, de
maneira crucial, a própria ideia da composição, definindo o caminho da
modernidade.
Pensando ainda nos ideais
carregados por essa Sinfonia, não surpreende que tenha sido usada em tantos
momentos críticos da história — durante a Segunda Guerra Mundial e na Queda do
Muro de Berlim, para ficar nesses dois exemplos. Também não poderia ser outro o
Hino da Europa, senão a ‘Ode à Alegria’.
Vivemos tempos estranhos.
Para nós, também, a Nona pode ser uma inspiração e um alento. É a música da
humanidade livre e justa, capaz, a despeito de tudo, de inventar a alegria.
Fonte: Arthur Nestrovski é
diretor artístico da Osesp. Autor de “Tudo tem a ver – literatura e música”,
entre outros livros. | =Nexo
(JA, Dez19)
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