Mostra na Fundação Juan March revela artista para quem não havia
limites entre popular e erudito
Aquarela sem título, 1929 |
Em exposição
voltada não exclusivamente para arquitetos, o centro cultural madrileno
Fundação Juan March revela mais do que uma projetista, mas uma Lina Bo Bardi
intelectual capaz de trafegar tranquilamente entre uma série de disciplinas.
‘Lina Bo
Bardi: Tupi or Not Tupi - Brasil 1946-1992’, em cartaz na capital espanhola, é
uma das maiores retrospectivas já realizadas sobre a arquiteta
ítalo-brasileira. A mostra tem 348 itens que atestam essa enorme capacidade de
Lina para o diálogo.
A
organização ficou a cargo da tríade espanhola Mara Sánchez Llorens, Manuel
Fontán del Junco e María Toledo Gutiérrez —esta última, aliás, destaca como ‘a maneira de Lina entender a arquitetura é
muito mais porosa, global, aberta, expandida’.
Isso se
verifica nas dezenas de croquis originais de Lina Bo Bardi. Feitos sem a
ambição de serem expostos ao público, eles ganham quase o estatuto de obra de
arte nas paredes em Madri.
Os desenhos
da Casa de Vidro, do Masp e do Sesc Pompeia raramente têm uma precisão
geométrica ou ênfase estritamente técnica. Seus riscos encantam mais pelas
ocasiões afetuosas, lúdicas e fantasiosas que imaginava para os ambientes.
Esboço cadeira Bowl, 1951 |
Dentre as
dezenas de desenhos emprestados pelo Instituto Bardi, há o esboço que mostra o
vão livre na avenida Paulista ocupado pelo Circo Piolin. Outro apresenta o
mesmo com escalas irreais e ativados por um sem-número de pessoas.
Mara Sánchez
Llorens, que já havia escrito uma tese e dois livros a respeito da arquiteta
ítalo-brasileira, identifica que Lina Bo Bardi compreendia ‘a arquitetura não
somente como edifício, mas aquilo que sucede após a sua inauguração’, uma ‘arquitetura
que deixa a vida acontecer sem impor formas determinadas’.
Os objetos
criados por Lina e também expostos em Madri corroboram essa ideia —cadeiras,
colares, uma grande vaca mecânica, o delicado inseto feito com um bulbo de
lâmpada e uma pluma, além dos coloridos troncos concebidos para a exposição ‘Caipiras,
Capiaus: Pau-a-pique’ e o porco cor-de-rosa sem cabeça da cenografia da
montagem de 1985 da peça ‘Ubu Rei’, de Alfred Jarry.
Esta é a
primeira grande exposição individual de Lina Bo Bardi na Espanha. O caráter
didático da mostra se deve ao objetivo de apresentar a arquiteta para um
público que pouco (ou nada) a conhece dela.
‘Queremos
mostrar a segunda metade do século 20 no Brasil através de Lina’, relata
Sánchez Llorens. A Fundação Juan March já demonstrara interesse pela cultura
brasileira com uma grande exposição de Tarsila do Amaral realizada em 2009.
A
instituição trata as duas mostras como complementares. Manuel Fontán del Junco,
um dos organizadores da mostra, compara: ‘Enquanto Tarsila é uma brasileira que
se educa na tradição francesa para retornar ao país e desenvolver sua obra
muito particular, Lina é a estrangeira que vai explicar o Brasil para os
brasileiros’.
Lina Bo Bardi, 1914-1992 |
Lina Bo
Bardi saiu da Itália em 1946, estabeleceu-se no Brasil e por aqui ficou. Nas
cinco décadas que passou no hemisfério sul, formulou uma visão muito particular
do país.
Contrapôs-se
a qualquer distinção hierárquica entre arte erudita e arte popular. Via valor
no que chamava de pré-artesanato —objetos jogados no lixo e posteriormente
coletados por pessoas muito pobres, que fazem adaptações e conferem novas
funções a essas peças por puro instinto de sobrevivência.
Feitos por
anônimos das classes menos favorecidas, esses objetos seriam o ponto de partida
para a construção, segundo Lina, de uma cultura autenticamente brasileira.
Só depois de
sua morte, em 1992, as ideias de Lina se difundiram para além do país. Ela
retorna postumamente ao debate europeu que deixou pouco após dirigir a
prestigiada revista Domus durante a Segunda Guerra Mundial em Milão. Nos
últimos anos, Lina Bo Bardi foi protagonista de exposições em Londres, Berlim, Amsterdã,
Paris, Viena e Estocolmo.
A exposição
de Madri também é diferente, pois os desenhos originais de Lina são entremeados
por trabalhos de Max Bill, Agostinho Batista de Freitas, Saul Steinberg, Maria
Auxiliadora, Hélio Oiticica, Alexander Calder —artistas que ela e seu marido
Pietro Maria Bardi expuseram no Masp ou receberam em sua Casa de Vidro.
Nessa busca
por apresentar o universo da arquiteta para além das obras que concebeu, entram
também um conjunto de carrancas do rio São Francisco, bancos indígenas e um
cocar, os objetos de pré-artesanato coletados por ela.
Há ainda um
colorido móvel com dezenas de bonecos em movimento representando um circo e
pequenos bustos de madeira com feições que claramente remetem a máscaras
africanas, peças que estavam expostos em ‘A Mão do Povo Brasileiro’, mostra
feita por Lina em 1969 no Masp.
Tanto seus
desenhos quanto os objetos indicam o interesse dela pelos acontecimentos
populares. No seu imaginário, a baixa cultura não se subjugou a alta cultura. O
que será que Lina acharia de suas ideias terem ido parar na vizinhança do Museu
do Prado?
Fonte: Francesco
Perrotta-Bosch | FSP
(JA, Dez18)
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