Símbolo da Guerra do Vietnã
Completaram-se 50 anos da manhã em que Nick Ut, fotógrafo sul-vietnamita, cobrindo a guerra em seu país, foi até Trang Bang, aldeia a 50 km de Saigon. Na véspera, soubera de combates acontecendo naqueles lados.
Nick, que era bem jovem e trabalhava na Associated Press, até
hoje se lembra dos corpos à beira da estrada, e das centenas de pessoas
tentando escapar. Finalmente, chegou a uma aldeia destruída por seguidos
bombardeios. ‘Cansados daquilo, os moradores procuravam refúgio nas ruas,
debaixo de pontes, ou em qualquer outro lugar onde conseguissem momentos de
calma’.
Pelo meio-dia, tendo tirado várias fotos, ele saía da aldeia
quando notou um soldado acionando uma granada de gás amarelo, das que serviam
para indicar alvos. Pegou a câmera e imediatamente avistou um avião lançando
quatro bombas de ‘napalm’.
Ainda sem saber se havia feridos, Nick foi voltando e logo
encontrou pessoas fugindo do ‘napalm’.
Fiquei chocado quando vi uma mulher com uma perna
terrivelmente queimada. Ainda guardo na retina uma idosa tendo ao colo um bebê
que morreu na minha frente, e outra mulher carregando um menininho com
descolamento da pele.
Então, ouviu gritos de criança: ‘Nong qua! Nong qua’ (‘Que quente! Que quente!’). Pelo ‘viewfinder’ da câmera,
deparou-se com uma menina que havia tirado as roupas em chamas e, completamente
nua, corria chorando na direção dele. Fotografou-a.
Ela gritava que estava morrendo, e pedia água. Baixei a
câmera e dei-lhe meu cantil para beber. Querendo refrescá-la, joguei-lhe água
no corpo, o que foi pior ̵ eu não sabia que não deve se derramar água em
queimaduras.
Nick enrolou-a num cobertor, e a levou na van, junto com o
irmão, até o hospital mais próximo, na cidade de Cu Chi. Ela seria depois
transferida para Saigon. Phan Thị Kim Phúc, que tinha nove anos, só voltaria
para casa após 14 meses de internação, e 17 cirurgias, inclusive transplantes de pele. Quando saiu do
hospital, ainda tinha limitações nos movimentos, e sentia dores ̵ algumas
persistem até hoje.
A foto da menina correu o mundo nas primeiras páginas de
jornais, e obteve o Prêmio Pullitzer. Por certo, você a conhece. Mais eloquente
que qualquer palavra, ela se tornou um símbolo da Guerra do Vietnã, ajudando a
mostrar sua barbaridade, e o papel moralmente indefensável dos Estados Unidos.
Durante anos, Kim detestou a foto, por aparecer nua.
Sentia-se, porém, agradecida a Ult, que lhe salvara a vida. Ao mesmo tempo,
convivia com sequelas das queimaduras ̵ além das dores, a consternação, até
vergonha, de ver cicatrizes cobrindo-lhe um terço do corpo.
Foi só adulta, casada com um compatriota, e vivendo no
Canadá, que por fim encontrou paz diante do sucedido. Mãe de dois filhos, criou
em 1997 a Kim Phúc Foundation, para oferecer assistência física e psicológica a
crianças vítimas de guerras, e a Unesco a nomeou Embaixadora da Boa Vontade.
Nesse trabalho, viaja pelo mundo, visitando áreas conflagradas. Tendo ficado
amiga do fotógrafo, a quem chama de ‘tio’, hoje entende que a foto lhe
proporcionou uma singular chance de ajudar as pessoas.
Aposentado e morando em Los Angeles, Nick relembrou a
história em artigo no Washington Post:
‘Odiarei para sempre’ ̵ escreveu ̵ ‘as circunstâncias em que Kim e eu nos conhecemos. (...). Mas tenho orgulho da foto, das emoções, e conversas que ela suscitou pelo mundo. A verdade continua sendo necessária. Se uma única foto pode fazer diferença, talvez ajudando a acabar com uma guerra, significa que nosso trabalho como fotógrafos é tão vital hoje, como sempre foi’.
Kim Phuc Phan Thi
Vive no Canadá e trabalha na Kim Foundation International,
que presta ajuda a crianças vítimas de guerras em todo o mundo.
Cresci no vilarejo de Trang Bang, no Vietnã do Sul. Minha mãe
disse que eu ria muito quando era menina. Tínhamos uma vida simples, com
fartura de comida, pois minha família tinha uma fazenda, e minha mãe
administrava o melhor restaurante do lugar. Lembro-me de que amava a escola e
as brincadeiras com meus primos, pulando corda e correndo umas atrás das outras
alegremente.
Tudo isso mudou em 8 de
junho de 1972. Tenho apenas lampejos de memória
daquele dia terrível. Eu estava brincando com meus primos no pátio do templo.
No momento seguinte, passou um avião voando baixo com um barulho ensurdecedor.
Então houve explosões, fumaça e uma dor horrível. Eu tinha 9 anos.
O napalm cola em você, não importa o quão rápido você corra,
causando queimaduras e dores terríveis que duram a vida toda. Não me lembro de
correr e gritar: ‘Nóng quá, nóng quá!’ (muito quente, muito quente!). Mas as imagens de filmes e as memórias de outras
pessoas mostram que gritei.
Você provavelmente já viu minha foto tirada naquele dia,
fugindo das explosões com os outros –uma menina nua com os braços estendidos,
gritando de dor. Foi tirada pelo fotógrafo sul-vietnamita Nick Ut, que
trabalhava para a agência Associated Press, e publicada nas primeiras páginas
dos jornais do mundo todo. Ela ganhou o Prêmio Pulitzer. Com o tempo, tornou-se
uma das mais famosas da Guerra do Vietnã.
Nick mudou minha vida para sempre com aquela foto notável.
Mas ele também salvou minha vida. Depois que ele tirou a foto, largou a câmera,
envolveu-me em um cobertor, e me carregou correndo em busca de atendimento
médico. Sou eternamente grata.
No entanto, também me lembro de odiá-lo às vezes. Cresci
detestando aquela foto. Pensava comigo mesma: ‘Sou uma garotinha. Estou nua.
Por que ele tirou aquela foto? Por que meus pais não me protegeram? Por que ele
imprimiu aquela foto? Por que eu era a única criança nua, enquanto meus irmãos
e primos na foto estavam vestidos?’. Eu me sentia feia e envergonhada.
Enquanto crescia, às vezes eu desejava desaparecer, não apenas devido aos meus ferimentos –as queimaduras marcavam um terço do meu corpo e causavam dor intensa e crônica–, mas também em razão da vergonha e do constrangimento de ser desfigurada.
Eu tentava esconder minhas cicatrizes sob as roupas. Sentia
uma ansiedade e uma depressão horríveis. As crianças na escola fugiam de mim.
Eu era uma figura de pena para os vizinhos e, até certo ponto, para os meus
pais. À medida que envelhecia, temia que ninguém jamais me amasse.
Enquanto isso, a foto ficou ainda mais famosa, tornando mais
difícil navegar por minha vida privada e emocional. A partir dos anos 1980, participei de entrevistas intermináveis e encontros
com membros da realeza, premiês, e outros líderes, todos os que esperavam
encontrar algum significado naquela imagem, e em minha experiência. A criança
correndo pela rua tornou-se um símbolo dos horrores da guerra. A pessoa real
olhava da sombra, com medo de que fosse exposta como uma pessoa danificada.
As fotografias, por definição, captam um momento no tempo.
Mas os sobreviventes dessas fotos, em especial as crianças, devem de alguma
forma seguir em frente. Não somos símbolos. Somos seres humanos. Precisamos encontrar
trabalho, pessoas para amar, comunidades para abraçar, lugares para aprender e
ser nutridos.
Foi somente na idade adulta, depois de desertar para o
Canadá, que comecei a encontrar paz e a realizar minha missão na vida, com a
ajuda de minha religião, meu marido e amigos. Ajudei a criar uma fundação, e
comecei a viajar para países devastados pela guerra, para dar assistência
médica e psicológica a crianças vítimas da guerra, oferecendo, espero, um
sentido de possibilidades.
Sei como é ter sua aldeia bombardeada, sua casa destruída,
ver membros da família morrerem, e corpos de civis inocentes caídos na rua.
Esses são os horrores da Guerra do Vietnã, evocados em inúmeras fotografias e
vídeos. Infelizmente, também são imagens das guerras em todos os lugares, das
vidas humanas preciosas sendo danificadas e destruídas, hoje na Ucrânia.
São também, de forma diferente, as imagens horríveis dos
tiroteios nas escolas. Podemos não ver os corpos, como fazemos com as guerras,
mas esses ataques são o equivalente doméstico à guerra. A ideia de compartilhar
as imagens da carnificina, especialmente de crianças, pode parecer insuportável
–mas devemos enfrentá-las. É mais fácil se esconder da realidade da guerra se
não virmos suas consequências.
Não posso falar pelas famílias em Uvalde, no Texas, mas acho
que mostrar ao mundo as consequências reais de um tiroteio pode tornar concreta
a terrível realidade. Devemos enfrentar essa violência de frente, e o primeiro
passo é olhar para ela.
Carreguei os resultados da guerra em meu corpo. Você não se
livra das cicatrizes, física ou mentalmente.
Sou grata hoje pela potência dessa minha fotografia aos nove
anos de idade, assim como pela jornada que fiz como pessoa. Meu horror –do qual
pouco me lembro– tornou-se universal. Estou orgulhosa porque me tornei um
símbolo da paz. Levei muito tempo para abraçar isso como pessoa.
Posso dizer, 50 anos depois,
que estou feliz por Nick ter captado aquele momento, mesmo com todas as
dificuldades que aquela imagem criou para mim.
Essa imagem sempre servirá como um lembrete do mal
indescritível de que a humanidade é capaz. Ainda assim, acredito que a paz, o
amor e o perdão, sempre serão mais poderosos do que qualquer tipo de arma.
Fonte: A.C.
Boa Nova
(JA, Jun22)
Nenhum comentário:
Postar um comentário