Chamada de rainha, ela comandou quilombo em Mato Grosso no século 18
‘No seio de Mato Grosso, a festança começava / Com o
parlamento, a rainha negra governava / Índios, caboclos e mestiços, numa
civilização / O sangue latino vem na miscigenação’, cantava a Unidos de
Viradouro no Carnaval de 1994.
Com o samba enredo ‘Tereza de Benguela: uma Rainha Negra no
Pantanal’, a escola alcançou o terceiro lugar na competição, sua melhor posição
em muito tempo. Mais do que isso, antecipou em 20 anos a homenagem a essa líder quilombola, que viveu em meados do século 18.
Pois foi só a partir do dia 25 de julho de 2014 que a ‘Rainha Negra’ passou a ser
celebrada anualmente no Brasil. A lei 12.987,
sancionada por Dilma Rousseff - PT,
instituiu o ‘Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra’, com o
propósito de resgatar a memória de uma heroína negligenciada pela história.
Há poucos registros sobre seus feitos, mas o que se sabe é
que a Rainha Tereza, como era chamada, esteve à frente do Quilombo do Quariterê
depois que seu companheiro, José Piolho, foi morto pelas forças coloniais.
Naquele momento, ela assumiu a organização política e militar
da comunidade. ‘Foi uma liderança muito especial, porque ela não só pensava em
toda a estratégia de guerra e de resistência, como também era uma guerreira
combatente’, diz Jaqueline Fernandes, 41,
idealizadora e fundadora do maior festival de mulheres negras da América
Latina, o Latinidades.
Localizado no Vale do Guaporé, em Vila Bela da Santíssima
Trindade, Mato Grosso (perto
da fronteira com a Bolívia), o quilombo era controlado com mão de ferro por Tereza, que castigava
quem a desobedecia.
De acordo com Aline Nascimento, 34, historiadora, mestre em relações étnico-raciais e que
integra a equipe do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), havia um motivo por trás desse comportamento: ‘Essa
liderança mais rígida era não só por ser uma mulher, mas por dar conta de toda
uma estrutura de defesa e articulação’.
Registros históricos apontam que Tereza constituiu no
quilombo um sistema parlamentar, e comandou uma comunidade composta de negros e
indígenas, que viviam do cultivo de algodão, milho, feijão, mandioca, banana e
a comercialização dos excedentes.
‘Os quilombos não eram lugares de negros fugidos, e de
economia de subsistência, como afirmam os registros coloniais. Eles nunca foram
isolados dos mercados regionais. Pelo contrário, se mantinham por meio de
atividades agrícolas e da comercialização’, afirma Emmanuel de Almeida Farias
Júnior, 41, professor da Universidade Estadual
do Maranhão, e pesquisador das comunidades quilombolas na Amazônia.
Mas eram locais de resistência, e Rainha Tereza
transformou-se numa ameaça ao poder central. Em fins do século 18, ela terminou capturada e presa.
De acordo com uma versão da história, uma vez no cárcere, ela
parou de comer, e morreu em decorrência dos maus-tratos, e da falta de
alimentação. Sua cabeça foi cortada e exposta na praça do quilombo. Segundo
outra versão, ela se matou.
Para a historiadora Aline Nascimento, celebrar a líder
quilombola no dia 25 de julho é uma escolha simbólica,
porque chama a atenção para o poder de uma mulher negra. Na sua opinião, é
importante conhecer trajetórias como a de Tereza, para que a população negra
não seja vista apenas em uma relação de subserviência da escravidão, em
detrimento de histórias que também são de luta.
‘Por isso, é urgente retomar essas narrativas para
entendermos que não tem [só] uma Marielle, ou uma Tereza de
Benguela, existem muitas, que são silenciadas todos os dias, em todos os
lugares, mas que mesmo assim não abaixam a cabeça, e seguem em frente’, afirma
Nascimento.
A escolha de 25 de julho, por
sua vez, se deu porque, no mesmo dia, comemora-se o ‘Dia Internacional da
Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha’. A data virou um marco de luta e
resistência após o 1º Encontro de Mulheres Negras da
América Latina e do Caribe, realizado na República Dominicana, em 1992.
Para Jaqueline Fernandes, do festival Latinidades, a data não
só traz o protagonismo dessas mulheres, como também vem lembrar que, na América
Latina e no Caribe, houve um processo brutal de escravidão. ‘A abolição
inacabada deixou como mal legado os piores índices de acesso às políticas
públicas, e violência aplicada às mulheres negras’, diz.
Marcar no tempo a data, é trazer a necessidade de repensar
como as mulheres negras avançam, e continuam sofrendo todas as combinações de
violência, segundo a historiadora Aline Nascimento.
Para ela, as mulheres negras recebem o ônus de toda a estrutura, principalmente a econômica. Por isso, ‘olhar para as mulheres negras que estão na base, é pensar e construir soluções para toda a sociedade, e não só para um grupo’, afirma.
Fonte: Priscila Camazano | FSP
(JA, Jul21)
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