terça-feira, 13 de outubro de 2020

Arte Roubada

Alex Katz criou um mundo sem sobras em telas que viriam à Bienal de São Paulo, mas a pandemia atropelou todos os planos. A exposição agora é só virtual 












Uma mulher mais velha ajeita um blusão rosa com uma expressão de aconchego no rosto. Dois amantes se abraçam com ternura em meio às árvores. Poucas folhas amareladas pelo frio do outono caem no asfalto cinzento.

Quem observa essas telas plácidas e de atmosfera ‘cool’ de Alex Katz não imagina que um dos principais nomes da pintura da atualidade tem um humor bastante ácido.

‘Você não quer fazer algo que pareça velho. Eu quero fazer algo que pareça novo em folha. E, para as pessoas que gostam de coisas velhas, pintar coisas novas é raso’, afirma, meio sério e meio irônico, em entrevista pelo Zoom.

Nas suas telas, o pintor nova-iorquino congela num eterno presente o cotidiano que vive na ilha de Manhattan —a convivência com os amigos, familiares, e com a mulher Ada, que já foi retratada por ele algumas centenas de vezes.

 

‘Lisa e Brooks’, óleo sobre tela de 1995 

Outro tema recorrente são os arredores bucólicos de uma casa-ateliê no estado do Maine, próxima à uma praia, onde ele passa boa parte do tempo. Aos 92 anos, Katz afirma não acreditar em paraíso nem no amanhã radiante. ‘Não há passado, não há futuro, é só hoje’.

Um breve recorte de sua carreira de cerca de sete décadas está em exposição até o início de novembro no site da galeria Thaddaeus Ropac —são 30 telas de dimensões variadas selecionadas pelo seu amigo e crítico Robert Storr.

Mas essas obras deveriam estar agora no Brasil. Katz participaria da mostra principal da 34ª edição da Bienal de São Paulo, e também ganharia uma grande retrospectiva no Instituto Tomie Ohtake, na capital paulista, sua primeira na América do Sul. A pandemia e a alta do dólar forçaram a suspensão de ambos. ‘Não é a mesma coisa’, diz ele, sobre ver o seu trabalho na tela de um computador ou celular.

Precursor da pop art, Katz desenvolveu seu estilo nos anos 1950, depois de estudar na faculdade Cooper Union, em Nova York. Desprezando o ensinamento modernista que recebeu, decidiu fazer pinturas figurativas num momento em que os Estados Unidos se destacavam com os respingos abstratos de Jackson Pollock.

Mas, se as telas do expressionista abstrato inspiravam profundidade e contemplação, as de Katz, influenciadas pela estética dos outdoors publicitários e cenas de filmes, iam pelo caminho oposto, apostando na leitura fácil.

‘Eu cresci, sou um artista treinado, embora o meu trabalho não pareça assim para muita gente’, diz, refutando uma crítica comum a suas obras —a de que parecem terem sido feitas sem esforço.

Ser um pintor famoso foi algo consciente, ele diz que exigiu dele pensar muito sobre o ofício, e fazer coisas que se parecessem com a ideia de arte.

No colegial, notou que seus desenhos de moldes de estátuas, aos poucos, se tornaram melhores do que o de seus professores, o que o estimulou a levar a carreira a sério.

‘Eu não tinha nenhuma confiança, mas trabalhei duro e pensei que se eu posso me tornar tão bom vindo do nada, em 20 anos vou fazer algo realmente bom. E consegui’.

A estética de Katz —personagens chapados e sem sombra, contra grandes blocos de cor— se manteve em grande parte inalterada, ao longo das décadas, independente do movimento artístico em voga. Atualmente, parece fazer sentido num ambiente saturado de imagens. Ele se diz contente por ‘ser parte dessa saturação’, e afirma apreciar um mundo que se torna cada vez mais visual, e menos verbal, nas suas palavras.


Laura,  2017 


Outra característica de sua obra é a ausência de motivos explicitamente políticos. Desde adolescente, ele diz nunca ter gostado de arte engajada, porque a considera barata, e uma forma de rebaixar a pintura, como se alguém estivesse perguntando de forma obsessiva se o observador entende o que está representado ali.

Quando era estudante, ele recusou o convite de um professor para participar de uma mostra de arte politizada numa galeria importante —chance que a maioria dos jovens não desperdiçaria, conta.

Toda essa aversão talvez explique a sua total falta de cerimônia ao estraçalhar a pintura contemporânea americana. ‘Essencialmente decorativa’, diz ele, sobre a obra do artista negro e gay Mark Bradford, que representou os Estados Unidos na Bienal de Veneza de 2017, com um trabalho crítico ao presidente Donald Trump. ‘Suas telas grandes vão bem com tapetes brancos’.

Por outro lado, Katz afirma que foi uma covardia o recente cancelamento de uma exposição de seu contemporâneo Philip Guston, que traria uma série de telas do grupo racista Ku Klux Klan, pintadas no final da década de 1960.

‘Estamos em tempos reacionários. Cancelar uma exposição por um motivo político, é agir como covardes completos. Deixem a mostra de pé e digam a quem estiver protestando que vá para o inferno. Ponham todos eles atrás das grades se ainda fizerem algo’.

Em setembro, museus nos Estados Unidos, e no Reino Unido, anunciaram o adiamento de uma exposição de Guston, prevista para o ano que vem, alegando que esperam o momento certo para que a mensagem do pintor, um ativista antirracismo morto em 1980, ‘possa ser possa ser mais claramente interpretada’.

Katz passou uma parte dos últimos meses isolado na Pensilvânia, pintando, e diz que a pandemia proporcionou a ele ‘o melhor momento da vida’, já que, como todos os lugares estavam fechados, não precisava ir a nenhum canto.

Ele acha que o efeito da epidemia pode ser destruidor sobre a arte, dizendo acreditar que a pintura deve se tornar muito mais séria a partir de agora, refletindo o momento.

Questionado sobre o pleito americano do mês que vem, o artista responde com uma frase curta, às gargalhadas. ‘Bem, tive uma boa notícia hoje’. Poucas horas antes, Trump havia anunciado que estava infectado com o coronavírus.


MERCADO DE ARTE

Valor das obras

O trabalho de Alex Katz ainda é menos valorizado em relação a outros artistas de sua geração; o valor mais alto pago por uma obra sua foi cerca de US$ 4,1 milhões, ou R$ 22,8 milhões, ao passo em que o pioneiro da pop art, Jasper Johns, teve a pintura de uma bandeira vendida por US$ 36 milhões, ou cerca de R$ 200 milhões

Interesse recente

Um artigo de capa na revista suíça de art e Parket, em 1989, ajudou a reavivar o interesse pela obra de Katz, que ganharia diversas mostras na Europa e nos Estados Unidos nas décadas seguintes

Como se forma um pintor

Segundo Katz, pintar é uma atividade comunitária, e novos artistas se desenvolvem em contato com outros, não de maneira isolada, o que faz com que jovens se mudem para Nova York em busca de referências.

Cenário difícil

Muitos pintores voltam para suas cidades de origem, diz Katz, com os sonhos destruídos, pois não conseguem espaço em um mercado que se tornou corporativo e estagnado, dificultando bastante a entrada de jovens artistas

 

SOUP TO NUTS - THE SÃO PAULO BIENAL PROJECT

Quando Até 7 de novembro

Onde ropac.net/online_exhibitions

 

Homenagem a Utamaro, 2008

 


Fonte: João Perassolo   |  FSP


 

(JA, Out20)

 


 

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