Produzimos
arte desde o início da nossa história, e precisamos dela para unir e mover a
sociedade
Nos últimos meses, o mundo
procura na ciência respostas para mitigar a propagação e os resultados
devastadores de uma infecção viral. A ciência já nos trouxe muito e, em muito
pouco tempo nos ensinou que:
o O vírus é inativado por água e
sabão, ou álcool.
o Se propaga por contato próximo e
pode ser controlado por distanciamento físico entre pessoas.
o O vírus afeta o corpo humano, e
trouxe novas ideias de como ter mais sucesso no tratamento de infecções graves.
Graças ao esforço muito
concentrado de cientistas em todo o mundo, logo virão mais soluções, incluindo
as tão esperadas vacinas, armas extremamente eficazes para frear agentes
infecciosos. Se há algo que eu tenho esperança que aconteça no mundo
pós-pandemia é que a percepção da importância fundamental da ciência se
intensifique, e permaneça, como a memória imunológica permanece após uma
infecção ou vacina.
Mas se a ciência é
fundamental, não é só com ela que iremos sobreviver e reconstruir o mundo
pós-pandemia. Precisamos de mais do que o progresso de conhecimento que a
ciência traz. Precisamos de mecanismos que tragam a esperança, e coordenem a
nossa atuação em sociedade. Precisamos das artes e da cultura, atividades que
nós humanos praticamos desde o início de nossa história, e que são essenciais
para a vida em sociedade. Trata-se de uma forma de comunicação que transcende a
simples palavra, com uma capacidade ímpar para propagar ideias e emoções,
inspirar ações, e unir pessoas diferentes em torno de objetivos conjuntos construtivos.
E é exatamente isso que precisamos para progredir como sociedade — ações
conjuntas e construtivas.
EXISTE A
OPORTUNIDADE DE PROMOVER CRESCIMENTO DESTACADO NO MUNDO PÓS-PANDEMIA, UM
VERDADEIRO RENASCIMENTO CONJUNTO DA CIÊNCIA E ARTES
Sou suspeita para falar de
cultura, porque ,além de ser cientista, sou violinista amadora, e a música
clássica é parte integrante de minha vida, desde a infância.
Toco em um grupo,
a Orquestra de Câmara Miller, que reúne musicistas profissionais e amadores
voluntários, que tocam juntos pelo simples prazer de fazer música. Somos de
diferentes culturas, idades, pensamentos, profissões, e realidades. Nunca nos
conheceríamos se não fôssemos unidos pela música. E, apesar disso, juntos,
desvendamos tarefas difíceis e, unidos, produzimos momentos de magia musical.
As artes fazem exatamente isso: juntam e inspiram as pessoas nos seus
interesses comuns, fazendo pontes entre suas diferenças, e construindo aquilo
que nenhuma delas poderia fazer sozinha.
Embora a necessidade de isolamento
físico no momento tenha paralisado as atividades típicas de grupos musicais
como o nosso, não nos impediu de trocar ideias, músicas, risadas, planos, e
sonhos para o futuro. De fato, musicistas profissionais têm se mantido
extremamente ativos na sua missão cultural, dando continuidade à sua função
inspiradora e essencial, com uma criatividade que surge das limitações impostas
pelo momento.
Presenciamos uma proliferação
de apresentações musicais intimistas, em casa, além de vídeos com montagens de
interpretações de muitos profissionais, gravadas separadamente, unidas pela
tecnologia e vontade de construir juntos. Certamente, pelo menos uma dessas
vídeo-montagens lhe fez sorrir em algum momento da quarentena.
Há também as produções
individuais, que são emblemáticas do momento e isolamento, como a do violinista
Emmanuele Baldini sozinho na Sala São Paulo vazia, tocando a Ciaccona de J. S.
Bach em honra à maestrina Naomi Munakata, uma das mais de 60 mil vidas
brasileiras perdidas para o novo coronavírus. É uma peça que já completa 300
anos, e ainda, incrivelmente, reflete esse momento de maneira ímpar. Uma
apresentação no isolamento como essa traz, ao mesmo tempo, incômodo, reflexão,
vontade de promover mudança, e também esperança. Novamente, a arte traz mais do
que palavras podem explicar.
É exatamente por entender a
importância da cultura, que os governos de países que se tornaram exemplos no
lidar com a crise atual, como Alemanha e Nova Zelândia, já anunciaram programas
de apoio específicos para as artes dentro de seus planos de recuperação. Esses
países têm a visão de que existe a oportunidade de promover crescimento
destacado no mundo pós-pandemia, um verdadeiro renascimento conjunto da ciência
e artes, trazendo melhor qualidade de vida para todos.
Já no Brasil, que nem ao
menos tem plano para lidar com a pandemia (ou sequer um ministro da Saúde
titular), não podemos contar com um auxílio coordenado governamental para a
cultura, embora nunca se deva deixar de cobrar, com veemência, essas ações.
Façamos então o esforço
pessoal e conjunto de procurar apoiar artistas e as muitas organizações
culturais existentes. É hora de multiplicar a cultura de apoio ao meio
artístico, inclusive com a possibilidade de se beneficiar com deduções de
impostos. Precisamos das artes como mecanismo entrelaçador de nossa sociedade.
Temos uma cultura rica e diversa, e chegou a hora de zelar por ela. E se ainda
não está convencido da importância fundamental desse setor, basta imaginar como
seria a sua quarentena sem livros, vídeos, ou música.
Fonte: Alicia Kowaltowski, médica
formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na
área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de
Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de
Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo | Nexo
(JA, Jun20)
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