Após fim do distanciamento social do coronavírus, instituições de arte vivem sob nova realidade pós-pandemia, e abrem as portas pela primeira vez
Visitante no Museu do Prado,
em Madrid, na Espanha, após espaço reabrir as portas depois do isolamento
social causado pelo novo coronavírus
|
Nesta virada de mês, os
principais museus europeus começaram a reabrir como se tivessem recuado dezenas
de anos na máquina do tempo.
‘Estamos na situação ideal
para experimentar as exposições de maneira calma, relaxada e tranquila, como
era possível há décadas e décadas atrás’, resume Eike Schmidt, diretor das
Galerias dos Uffizi, que concentram em Florença obras-primas da Idade Média e
do Renascimento, como Giotto, Botticelli, Michelangelo e Caravaggio
.
Crise, restrições a viagens e
medo de contágio do coronavírus devem afastar turistas internacionais e cortar
as visitas nacionais, diz o diretor do museu, que sonha com o fim da era do
‘selfie-to-go’.
Na Espanha, o Prado reabriu
no último fim de semana com uma reorganização da coleção para tirar o melhor da
necessidade de reduzir o fluxo e reorientar o caminho dos visitantes pelo
museu.
Das 1.714 obras da
instituição em Madri, 214 foram selecionadas para compor ‘O Reencontro’, com 85
mudando de sala para otimizar a visita de no máximo 1800 pessoas por
dia, ou um terço da frequência normal.
Na ‘coleção concentrada’, é
possível ver lado a lado os autorretratos de Dürer e Tiziano, ou as
representações de ‘Saturno’, de Rubens e Goya; no mesmo espaço estão ‘A
Deposição da Cruz", de Rogier van der Weyden, e sua contemporânea ‘Anunciação’,
de Fra Angelico, e sete obras de Diego Velázquez se mudaram para a mesma sala
da famosa ‘As Meninas’.
A Itália e a Espanha fazem
parte dos 32 entre 35 países europeus que já haviam liberado totalmente a
reabertura de museus no começo de junho. O Louvre, na França, anunciou há pouco
que pretende reabrir em julho
.
Entre os maiores países, a
Rússia não marcou data e o Reino Unido vai manter esses espaços fechados ao
menos até 4 de julho. Na França, museus pequenos abriram, mas outros estão em
compasso de espera. Instituições como a Tate e a National Gallery, em Londres,
disseram ser cedo até para falar em planos de reabertura.
Mas o Centro Pompidou, maior
museu de arte moderna da Europa, já tem data marcada –1º de julho,
segundo o diretor Bernard Blistène, que planeja inventar “um novo
relacionamento com o público”, agora que só pequenos grupos serão permitidos.
Por causa das paralisações, o
Beaubourg, como o museu é conhecido, adiou para outubro a exposição que
comemoraria o 150º aniversário de Matisse, e rearranjou planos para
outras galerias e atividades.
‘Diferente dos outros
espaços, o museu induz uma relação particular com o tempo’, diz Blistène, que
vê a pré-pandemia como período propício à ‘desaceleração pela qual clamavam os
surrealistas, para incentivar todos a pensar’.
‘O espaço do museu terá que
ser mais do que nunca uma plataforma de intercâmbio e educação. É isso que me
interessa, mais do que sonhar com uma volta ao mundo anterior’, diz o diretor.
Em Berlim, o Instituto KW de
Arte Contemporânea reabriu no fim de maio, com a expectativa de receber 40 visitantes
por dia, menos de um quarto da frequência anterior. ‘Aqueles que vão ao museu
para ver arte amarão o silêncio e o ‘um a um’ com cada obra’, diz Karoline
Köber, chefe de comunicação.
Dias antes, a Pinakothek da
Alemanha havia aberto o Pinakothek der Moderne, com seus quatro museus de
arquitetura, design e arte gráfica. Bernhard Maaz, diretor das coleções de
pintura da Bavária, disse esperar uma reconstrução ‘passo a passo’ das
atividades.
A frequência também ficou
mais restrita no Reina Sofía, que abriga o famoso ‘Guernica’, de Pablo Picasso
–só um terço dos antigos visitantes poderão entrar nos três espaços do museu.
Prevista para a primeira
quinzena de junho, a reabertura será com as exposições organizadas antes do
confinamento —‘Musas Insubmissas’, e uma retrospectiva da obra de Ignacio Gómez
de Liaño—, agora prorrogadas. Uma mostra do holandês Piet Mondrian foi adiada
para novembro.
Segundo a diretora de
comunicação do Reina Sofía, Concha Iglesias, o pós-pandemia será um período sem
exposições de grandes nomes e longas filas.
‘Esta é a hora de buscar
novas colaborações entre as diferentes instituições, entre o público e o
privado, e intensificar o trabalho em rede’, diz ela, que antevê visitantes
ainda inseguros em relação a espaços fechados.
Abrigado num antigo hospital
que atendeu vítimas da Gripe Espanhola, o Reina Sofía quer ‘voltar a cuidar dos
visitantes com a maior segurança possível, de uma nova forma’, afirma Iglesias.
A ideia de museus como ‘espaços
particularmente adequados para nos abrigarmos, nos momentos de incerteza, em
que o futuro nos aflige’, está também no imaginário de Ferran Barenblit,
diretor do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona.
Com uma releitura da coleção
sob o contexto do coronavírus, ele espera reabrir suas portas na segunda metade
de junho. Barenblit elencou para o jornal espanhol El País obras que remetem à
pandemia –entre elas, estão ‘A Natureza da Ilusão Visual’, de Juan Muñoz, em
que os personagens estão isolados, sem contato, em um mundo irreal, ‘Rizen’, de
Tàpies, uma cama de hospital que recebe o visitante, e o mural ‘Todos Juntos
Podemos Vencer a Aids’, de Keith Haring, sobre uma epidemia que ainda mata 700 mil pessoas
por ano.
Diogo Velázquez - 'Velha Fritando Ovos', |
Além de se prepararem para a
nova dinâmica no mundo real e no espaço físico, os museus se deram conta de que
há todo um espaço novo a ocupar, segundo Julia Pagel, secretária-geral da Rede
de Organizações de Museus Europeus.
Os serviços digitais
cresceram em 80% deles, com vídeos, jogos, testes e atividades
educacionais, mostra pesquisa feita pela rede com museus de 48 países.
Durante o confinamento, a
Uffizi publicou 21 exposições na internet e criou um perfil no TikTok. Em
dois meses de fechamento, recebeu quase 4 milhões de visitantes virtuais, número próximo de seu
público físico em um ano. Num único dia, 1,4 milhão de pessoas viram dois clipes em chinês.
As visitas online cresceram
em 40%
dos sites europeus, segundo a Rede de Organizações, com alguns registrando alta
de até 150% em abril.
Lançar rapidamente atividades
digitais foi também a reação do KW alemão, diz Köber: foram três turnês online, dez
filmes, quatro trabalhos em vídeo de artistas expostos pelo museu, quatro
transmissões ao vivo de eventos no bar do museu, além de um documentário e mais
de 30
mostras de exposições individuais.
Segundo Pagel, da Rede de
Organizações, o desafio agora será inovar no uso da tecnologia, para se adaptar
a uma nova sociedade. ‘Não basta colocar os quadros na internet. Precisamos
inventar novos formatos’.
Ainda de acordo com ela, as
consequências do ‘novo normal’ vão afetar quase todos os aspectos dos museus
nos próximos meses ou anos, com perda de renda, mudanças no comportamento dos
visitantes e novas exigências de saúde que terão impacto nos custos e na
organização do trabalho.
Embora boa parte dos grandes
museus europeus tenha apoio do estado, 3 em cada 5 dos diretores ouvidos pela Rede de Organizações
disseram perder em média € 20,3 mil, cerca de R$ 138 mil, por semana durante a pandemia. Em alguns, até 80% da renda
desapareceu.
A conta é alta para
instituições maiores e de cidades turísticas. Em um continente com 20867 museus, 5764 deles de
arte (segundo o Egmus, grupo europeu de
estatísticas sobre museus), passam pelas
galerias 655 milhões de visitantes por ano, com uma proporção de
estrangeiros que chega a 28% na Holanda, 45% em Portugal e 70% na Bélgica. Em Londres, eles são mais de 60% no Museu
Britânico e na Galeria Nacional.
A queda de 50% a 70% no turismo
global neste ano, segundo a OCDE, faz escassear não só receitas de ingressos, mas as
de produtos licenciados, dos cafés e restaurantes e de aluguel de espaços, como
relata Iglesias, do Reina Sofía.
Com a segunda maior coleção
de pinturas de Van Gogh no mundo, o Kröller-Müller, que fica num parque em
Otterlo, na Holanda, reabriu em 1º de junho sem ao menos 46% de seus visitantes, que vêm
do exterior, diz a diretora Lisette Pelsers.
No Reino Unido, preveem queda
forte na frequência quase 90% dos 427 diretores e profissionais de museus entrevistados
pelo Art Fund, filantrópica que capta recursos para arte; mais da metade, 56%, diz temer
pela sobrevivência.
A Royal Academy, por exemplo,
que depende de visitantes, doadores e patrocinadores, está perdendo cerca de £ 1 milhão, mais
de R$ 6 milhões, por mês, segundo a assessora Annabel Potter. Sem data para
reabertura, precisou cancelar exposições de Angelica Kauffman e Cézanne.
A saída, segundo a executiva
da Nemo, tem que passar por colaboração transnacional e trabalho em rede. ‘A
crise mostrou que os museus, vistos injustamente como paquidermes, podem ser
ágeis. Em três semanas a grande maioria deles reorganizou rapidamente suas
equipes para chegar ao público de uma nova forma’, afirma.
Seria porém ‘hipócrita e
falso’ acreditar que tudo mudará quando o coronavírus for erradicado, diz
Blistène, diretor do Beaubourg.
‘Sejamos francos, o impacto
dessa pandemia é fazer as pessoas entenderem que o sistema econômico e social
em que vivemos, está sem fôlego, inclusive em países economicamente
privilegiados como a França’, afirma ele.
Segundo o diretor, o
principal efeito do desconfinamento deveria ser perguntar quem vinha
frequentando os museus? Quem virá amanhã? E por que outras razões. além do
entretenimento?
‘E tentar fornecer respostas’,
acrescenta.
Fonte: Ana Estela de Sousa Pinto | FSP
(JA, Jun20)
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