quinta-feira, 14 de maio de 2020

Harmonia musical, humana e cósmica


A importância da música em nossas percepções do mundo, desde o pensamento grego do século VIII a.C. até os dias de hoje




‘Necessariamente, a música que nos constitui não é nem boa nem má; ela é a música que cada um de nós anseia naquele momento para poder entrar em contato com a sua alma, com o outro e com a alma do mundo. Não há satisfação maior do que a música e do que a dança, que funcionam como orgasmos cósmicos, onde se entra em comunhão com a vida.’ Refletiu André Balboni, músico e estudioso da relação fundamental entre música e filosofia, autor do livro ‘Sopro das Musas’ (Odysseus Editora, 2018).





Na Grécia Antiga, do século VIII antes da nossa era, ocorreu, com o surgimento das cidades-estados, um ressurgimento da escrita e dos poetas-cantadores (aedos), que davam voz a tudo que poderia se apagar. Um canto passado de geração em geração, contando as histórias dos antepassados, até Homero. Cada vez que esses poetas-cantadores se apresentavam diante do público, invocavam as Musas, deidades afiliadas a Apolo, deus do sol, da luz, mas também da música e da profecia.




Diferente do que vem a cabeça quando usamos o termo ‘musas’ hoje, para os gregos, as nove Musas, filhas de Zeus e Mnemósine (Memória), são uma constelação de seres que têm papel fundamental na transmissão de sabedoria, no bem viver inspirando ciência e arte, e se relacionam diretamente com a memória. Não por acaso a morada das musas, o Museion, dá origem a palavra ‘museu’, um dos muitos ‘lugares de memória’ das sociedades ocidentais.

As musas visitam o mundo para fundar a memória do ser humano, pois auxiliam na formação da memória através da musicalidade do ritmo, melodia e harmonia, e guardam os aspectos mais fundamentais da vida humana.

A palavra ‘música’, vem de musiké e significa ‘aquilo que é das Musas’ – nesse campo cosmológico do saber. Portanto, um músico doa o divino às pessoas, imbuído de uma responsabilidade ética. Segundo a concepção grega, a música terrena emula a Harmonia Cósmica (ou das Esferas), a música silenciosa do movimento dos planetas.

Cada pessoa possui uma musicalidade inerente, que é capaz de ressaltar na alma do outro diferentes processos catárticos, através de uma melodia singular.
A musicalidade depende da relação entre as três categorias da música: ritmo, melodia e harmonia.

o    Ritmo - provém da métrica da forma poética da forma do poema, é uma duração das notas que, na concepção bergsoniana, é aquilo que resiste entre uma nota e outra, em um tempo mais interno
o   Melodia  - significa ‘canto da voz ou incorporado’, uma fala que revela a singularidade e a verdade de cada ser
o    Harmonia -  é a relação estética entre dos sons. A música do ser humano é um espelhamento da harmonia cósmica, e essa mesma harmonia cósmica permeia a alma humana. Essa conexão de almas humanas e divinas é facilitada pelas Musas.

Do ponto de vista da filosofia platônica, temos as seguintes relações entre a música e o ser humano: ritmo-corpo, melodia-palavra, harmonia-alma. Mas, do ponto de vista da filosofia contemporânea, principalmente no campo ético, como é o caso do filósofo francês Emmanuel Lévinas, temos uma mudança de perspectiva sobre essa questão da filosofia da música. Para Levinás, a questão não está somente naquilo que é bom ou ruim, mas na noção de que o encontro com o outro nos constitui enquanto seres humanos. Assim, se Platão estava em busca da ‘boa música’, em Levinás podemos alçar uma pergunta mais profunda: qual é a música que nos constitui enquanto pessoa?

Qual a melodia verdadeira? Qual o contato com a verdade que reverbera no outro? Qual a ação e reação que o eu causa no outro? A música tem essa potência do encontro, de uma relação do despertar. Há outras relações que estabelecemos, ou músicas que nos desconstituem? Esse é o Sopro das Musas, sempre em busca de descortinar um novo mundo por meio da arte.

A música amplia a nossa percepção, nos desperta e desvela outras camadas do olhar, do sentir e do viver, assim como uma pintura, uma fotografia, um filme ou um livro. Cada um tem acesso a sua melodia interna, a sua própria voz e o seu silêncio. Uma verdade que, de uma forma ou de outra, vibrará no rosto do outro, celebrando os encontros e desencontros da nossa vida.

Nesta época de pandemia, fique em casa. Tente ligar o som, balançar o corpo, e experimentar a comunhão cósmica que ecoa do seu estado de verdade.







Fonte: Cassiana Der Haroutiounian   |   FSP



(JA, Mai20)



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