Há cem anos o surrealismo rompeu com lógica e mudou visão sobre o mundo
André Breton publicou em 1924 manifesto que lançou o movimento
Há cem anos o movimento
surrealista, impulsionado pelas descobertas de Freud sobre o inconsciente,
estremecia a ideia de racionalidade que embasava a arte, a organização social,
e o nosso próprio entendimento da vida. O manifesto de André Breton elevava o
território livre do sonho ao centro da criação, reverberando na obra dos mais
variados artistas pelo mundo.
Em uma carta a André Breton,
datada de dezembro de 1932, na qual Freud tenta esclarecer a polêmica em torno
de quem teria sido referido como o primeiro autor a tratar da simbologia dos
sonhos, se Volkelt ou Scherner, o ‘pai da psicanálise’ resolve deixar bem claro
o distanciamento de seu trabalho da aplicação na arte, defendida pelos
surrealistas.
‘Caro Senhor, agradeço-lhe
sinceramente por sua carta tão detalhada e amável. Você poderia ter respondido
mais brevemente: 'Tanto barulho...'. Mas teve a amabilidade de considerar minha
susceptibilidade particular sobre este ponto, que é, sem dúvida, uma forma de
reação contra a ambição desmedida da infância, felizmente superada. Não poderia
levar a mal nenhuma de suas outras observações críticas, embora nelas eu possa
encontrar vários motivos de polêmica. Assim, por exemplo: acredito que, se não
prossegui a análise dos meus próprios sonhos, tão longe quanto a dos outros, a
causa raramente é a timidez em relação ao sexual. O fato é, muito mais
frequentemente do que eu teria que descobrir regularmente, o fundo secreto de
toda a série de sonhos tem a ver com meus relacionamentos com meu pai, que
havia falecido recentemente. Pretendo que eu tinha o direito de estabelecer um
limite à inevitável exibição (assim como a uma tendência infantil superada).
Agora uma confissão, que você deve acolher com tolerância! Embora receba tantos
testemunhos de interesse que você e seus amigos têm pelas minhas pesquisas, eu
mesmo não sou capaz de entender claramente o que é e o que quer o surrealismo.
Talvez eu não seja de todo feito para compreendê-lo, eu que estou tão distante
da arte. Seu cordialmente dedicado, Freud’.
Oito anos antes dessa carta,
Breton assinava um manifesto, que completa cem anos, lançando oficialmente o
movimento do surrealismo. Nele, faziam-se invectivas contra o racionalismo e o ‘império
da lógica’, e se agradecia enfaticamente às descobertas de Freud, uma vez que
por meio delas, segundo Breton, desenhava-se ‘afinal uma corrente de opinião,
graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações,
pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias’.
Essas descobertas afetaram os
artistas do grupo de formas diferentes, mas apontavam para um denominador
comum: o desejo de se liberarem do compromisso com temas ou gêneros
predeterminados por uma tradição artística e literária, cujos lastros eram
fortalecidos na modernidade graças às ações de divulgação da imprensa, e de um
mercado editorial emergente, que fizeram aumentar a circulação e o interesse
pelas obras ‘clássicas’.
O nome surrealismo, escolhido
por Breton e Philippe Soupault foi uma homenagem a Guillaume Apollinaire, a
partir da contração da palavra supernaturalismo, tomada, por sua vez, de
empréstimo da dedicatória de Gérard de Nerval para seu livro ‘Les Filles du Feu’
(1854).
Em especial, a violência, a
sexualidade e os desejos reprimidos, temas tratados por uma sintaxe enérgica,
mais do que bem acabada, capaz de fazer os significantes do texto serem mais
importantes do que os significados, beirando o nonsense, já estavam presentes
na literatura francesa, antes que o método psicanalítico os confirmasse como
conteúdos latentes, ou seja, aqueles que, estando encobertos pelas normas do
comportamento em sociedade, são sempre mais importantes e influentes em nossa
vida do que os que se dão por manifesto.
A obra do Conde de
Lautréamont (pseudônimo de Isidore Lucien
Ducasse) é um exemplo disso. Os seus ‘Cantos
de Maldoror’ (1868) são uma espécie de rapsódia perversa que destrói
deliberadamente a prosa francesa com erros ortográficos propositais, plágios
explícitos de outros autores, e repetição encanecida de convenções literárias
antiquadas. É famosa a sua frase (que se
tornou quase um mote para a composição de alguma obra surrealista) ‘belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de
dissecação de uma máquina de costura e um guarda-chuva’.
Breton ensinou métodos
semelhantes para a composição surrealista, do ‘primeiro e último jato’, com a
escrita rápida, sem muito pensar, que espelhava o método clínico de Freud, de
deixar o paciente falar à vontade, sobre qualquer coisa que lhe viesse à mente,
por mais insignificante que fosse.
Tal como propôs no manifesto de 1924, para Breton o verdadeiro valor da imagem reside naquilo que se arraiga no inconsciente, no território livre dos sonhos. ‘Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las primeiro para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas só têm a ganhar com isso’.
Nas artes plásticas, esses métodos nunca fizeram muito sentido, e os artistas tiveram que usar drogas psicotrópicas ou ingerir grandes doses de álcool (em geral usaram ambos) para experimentar estados alternativos de consciência que produzissem neles alucinações, ou imagens, nunca antes figuradas por ninguém sobre uma tela.
Entretanto, só conseguiam
pintar efetivamente após o porre, ou terem cessado os efeitos das drogas. É
famosa a declaração a esse respeito de Max Ernst, já idoso, vivendo em sua
confortável casa no Arizona (NA), com a esposa, a também artista surrealista Dorothea
Tanning. A narrativa, no entanto (que é
parte da história do movimento), é a de
que faziam tudo sob os efeitos daqueles recursos exteriores, capazes de
induzi-los a liberar, de modo convulsivo, as forças do inconsciente.
Um ano antes da carta de Freud a Breton, em 1931, Salvador Dalí e René Magritte produziram obras que se tornaram verdadeiras cartas-emblemas das proposições do surrealismo na arte visual, mas que foram feitas seguindo rigorosamente as técnicas tradicionais da pintura histórica: ‘A Voz dos Ventos’ (La Voix des Airs), de Magritte, e ‘A Persistência da Memória’ (La Persistencia de la Memoria), de Dalí.
A pintura de Dalí também se
insere dentro de uma tradição histórica —e para ele são caros os exemplos de
Rafael, Vermeer, Velázquez e Zurbarán. O cinema também o interessou vivamente,
sendo famosa a sua parceria com Luis Buñuel no antológico ‘Um Cão Andaluz’, de 1929, mesmo ano
em que conheceu Gala Éluard (então esposa
de Paul Éluard), por quem se apaixonou, e
com quem se casou tempos depois.
Breton, contudo, quis bani-lo do movimento devido à simpatia e adesão de Dalí ao governo de Franco e ao fascismo, mas também à forma escandalosa com que se comportava, chamando mais a atenção para si do que para a sua atividade, como um artista engajado com as propostas do grupo.
Todavia, foi justamente esse exibicionismo (além de seu posicionamento político) que atraiu o interesse de Walt Disney e de Hollywood. Dalí e Disney idealizaram a animação ‘Destino’ (sobre a personagem mitológica Chronos), na década de 1940 (o animador John Hench e o artista trabalharam no storyboard entre 1945 e 1946), mas ela só viria a ser produzida pelo estúdio em 2003, com recursos de computação gráfica.
A pintura de Magritte também influenciou o cinema. Seu quadro ‘O Império das Luzes’ (L'Empire Des Lumières), pintado em 1961, para a amiga Anne-Marie Gillion Crowet, serviu de referência para o filme ‘O Exorcista’ (1973), de William Friedkin.
Trata-se da vista noturna de uma casa, a certa distância, com silhueta, telhados e árvores à volta, pouco iluminados pela tímida luz de um poste, enquanto o céu, azul claro com nuvens, é um indicativo de uma manhã plenamente ensolarada. É como se dois tempos diferentes, dia e noite, fossem representados justapostos, dotando uma cena banal de mistério e profunda solidão.
O preciosismo nos detalhes,
tentando reproduzir algumas das técnicas da pintura flamenga e italiana dos
séculos 15 e 16, interessou a outros artistas que também flertaram
com o movimento, como Giorgio de Chirico e seu irmão Alberto Savínio (Andrea de Chirico),
este último famoso pelos retratos portentosos de mulheres reclinadas em divãs
com cabeças de pássaros.
Mulheres reais também tiveram
papéis muito importantes no surrealismo europeu e latino-americano. A começar
por Leonora Carrington, artista homenageada na Bienal de Veneza de 2022, com
curadoria de Cecília Alemani.
Carrington declarou, no
começo dos anos 2000, já quase no final da vida, como via os surrealistas:
‘Eram um grupo essencialmente de homens, que tratavam as mulheres como musas.
Isso era bastante humilhante. Por isso, não quero que me chamem de musa de nada
nem de ninguém. Jamais me considerei uma mulher-criança, como André Breton
queria ver as mulheres. Nunca quis que me entendessem assim, nem tampouco ser
como os outros. Eu caí no surrealismo porque sim. Nunca perguntei se podia
entrar’.
A artista foi noiva de Max
Ernst, até ele ser aprisionado pelos nazistas em Paris. Ernst fugiu da Europa,
casando-se, em 1941, com a colecionadora Peggy Guggenheim, e jamais
enviou a Carrington notícias de seu paradeiro. A pintora teve uma crise de
depressão, foi internada em asilo na Espanha por algum tempo e, logo depois,
migrou para o México, mantendo uma amizade estreita com a também pintora
surrealista Remedios Varo.
Em território americano, o
surrealismo grassou na produção de Rufino Tamayo, Wifredo Lam, Roberto Matta,
Wolfgang Paalen. No Brasil, houve uma influência decisiva do surrealismo
francês nas produções de Ismael Nery, Murilo Mendes e Jorge de Lima (que produziu fotocolagens em diálogo direto com Max
Ernst, Alberto da Veiga Guignard e Walter Lewy). A partir de 1928, nota-se a presença do movimento nas sínteses da
pintura da fase antropofágica de Tarsila do Amaral, entre outros.
Em aspectos e intensidades
diferentes, o surrealismo latino-americano reverberou as questões de identidade
nacional, e do papel sociopolítico dos artistas na construção das nações
relativamente novas em relação ao longo processo de independência da exploração
colonialista perpetrado pelas metrópoles europeias.
Mas, talvez, a presença mais
significativa a adotar as proposições surrealistas de uma conotação
político-social, vista aos olhos de hoje como progressista, tenha sido a
mexicana Frida Kahlo. Breton se interessou prontamente pelo seu trabalho,
chegando a organizar a sua primeira exposição individual, em Nova York, em 1938.
Depois que Frida passou por
diversas cirurgias em decorrência de um acidente grave, em 1925, (teve uma fratura pélvica, perfurações no
abdômen e no útero, três fraturas na coluna vertebral, e o pé direito esmagado), além das diversas traições sofridas durante o
casamento com o também pintor Diego Rivera, sua arte acolheu com sensibilidade
e magia as imagens das inúmeras reconstituições de si, atada, remendada, como
se o seu corpo fosse o território de experimentação de uma obra de arte,
qualquer que seja a denominação que se dê a ela.
Frida disse certa vez: ‘Pensavam
que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a
minha própria realidade’.
De fato, às vezes, a vida
pode ser muito surpreendente, e mais surreal do que a arte possa, sequer, vir a
sonhar.
Fonte: Luiz Armando Bagolin, Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP | FSP
(JA, Jul24)