A preferência nacional ao longo dos tempos
A mania não é recente: desde os tempos de Caminha, Anchieta e Nóbrega que esta terra abençoada cultiva suas taras -o que deu muito trabalho aos jesuítas. Já no início do século 17, quando o Brasil tinha a idade do nosso Barbosa Lima Sobrinho, um viajante que andou pelo Brasil notou que éramos chegados a uma perversão sexual. O pudor da época impediu que ele fosse mais claro a respeito dessas taras, mesmo assim deixou algumas dicas ao notar que as nossas mulheres tinham ‘ancas e nádegas enxundiosas que convidavam à luxúria’.
No início do século que está acabando, houve um incidente que
ia criando um ‘casus belli’ entre o Brasil e a Argentina: uma brasileira
quebrou a cara de um argentino na Calle Florida, usando uma daquelas sombrinhas
do tempo de Marcel Proust que, abertas, pareciam um abajur.
Motivo: o argentino insinuara alguma coisa abominável. Na
mesma época, as marafonas portenhas fizeram um abaixo-assinado às autoridades
locais pedindo que a polícia impedisse os visitantes brasileiros de terem
acesso aos lupanares. Motivo: os brasileiros só queriam aquilo.
Daí que, sendo ou não preferência nacional, a bunda é mais
nossa do que a Petrobrás -que anda ameaçada nesses tempos neoliberais de
globalização. Não sendo recente, a mania não pode ser considerada uma
exclusividade nossa. A Bíblia e o Alcorão mencionam esse tipo de obsessão que
acompanha o homem desde a caverna. Daí a prodigalidade com que a estatuária
consagra essa preferência. Os livros que se dedicam ao assunto destacam duas
vênus dos tempos mais remotos: a de Laussel, que é uma espécie de baixo relevo,
e a de Willemdorf, esta última podendo ser confundida com uma brasileira de
nossos dias, dessas que desfilam nas escolas de samba.
Em tempo: chamar de vênus essas imagens ou estátuas é uma
metáfora: a Grécia sequer existia e seus deuses não haviam sido criados.
Usou-se o recurso para facilitar a coisa, num tempo em que a suficiente palavra
‘Vênus’ tinha carga erótica e patológica, uma vez que logo produziria o
adjetivo ‘venéreo’.
A posteridade adotou a nomenclatura e passou a chamar de ‘Vênus’
qualquer figura, esculpida ou desenhada, que realçasse as formas da mulher. Até
a finada Josephine Baker foi catalogada como a ‘Vênus de Ébano’ -e olha que
merecia, tinha um corpão.
Mas nem mesmo as vênus resistem aos movimentos de vanguarda
que periodicamente bagunçam o coreto de nossas preferências. A bunda foi
declarada ‘la bête noir’ das artes abstratas que nasceram na virada do século.
Os dadaístas repudiavam os museus acadêmicos porque eles não passavam de ‘uma
coleção de bundas’ -o que era uma generalização apressada: nem a Mona Lisa, de
Leonardo, nem as madonas de Rafael entraram nos museus por serem bundudas. Os
dadaístas odiavam sobretudo a Vênus Calipígia, que ao contrário da de Milo, não
foi encontrada numa ilha com esse nome. Calipígia significa exatamente o que o
nome diz: boa de bunda. Desculpem a erudição de almanaque: calipígia vem do
grego ‘kalos’, que expressa a ideia do belo, como em caligrafia, que significa
boa letra. O ‘pígia’ é fácil de adivinhar.
Pulando da mais remota antiguidade para a Renascença, a bunda
prosseguiu inspirando artistas de gênio. Há magníficas bundas até mesmo na
Capela Sistina, local acima de qualquer suspeita. Mais tarde ainda, ao longo do
século 19, Ingres e Renoir deixaram-nos
excelentes espécimes. Esse último, não contente em desenhar bundas com
generosidade, procurou nelas a essência da carne por meio das complicadas cores
que o tornaram notável.
O fotógrafo americano Man Ray, 1890-1976, que pode ser considerado um artista de vanguarda,
deixou-nos, em 1924, o ‘Violino de Ingres’; uma boazuda
nua e sentada, de costas, provando que o redondo dos violinos, como o dos vasos
gregos, teve a mesma inspiração. E para o meu gosto pessoal temos Velásquez,
mais antigo do que Renoir, que nos deixou a ‘Vênus ao Espelho’, com um ângulo
estupendo, o volume exato, a posição perfeita. Nenhuma dessas meninas que
aparecem nas revistas especializadas de hoje podem a ela ser comparadas, donde
se conclui que os espanhóis também passavam bem.
Quem passou mal foi a turma da estrada, aí pelos meados do
século. As moças da paz e do amor não davam importância a esses detalhes
cafonas, eram achatadas, tábuas de passar roupa, usavam uns vestidões folgados
e encardidos. E os rapazes preferiam outras coisas, faziam sexo para contrariar
o sistema e protestar contra a guerra do Vietnã, não para obterem prazer, que
ficava por conta do rock e da droga -o que vem a ser um pleonasmo.
Basta dizer que os modelos mais em evidência naqueles tempos
cáusticos eram Veruska e Twiggy. Apesar dos belos rostos, elas não fizeram
sucesso na abençoada Terra de Vera Cruz. Daí o famoso brado do cronista José
Carlos de Oliveira da varanda do Antonio's, num fim de noite e de bebedeira,
clamando:
‘Prefiro a metade de uma Wilza Carla a duas Veruskas juntas!’
No Parque da Luz – um jardim público de 1825, o mais antigo de S. Paulo – ao lado da Pinacoteca, fica localizada a discreta, porém exibida, ‘Ilhota das Estátuas Calipígias’. Basta caminhar pelas sinuosas alamedas de pedestres para chegar até ela. Parece uma miragem nas manhãs ensolaradas.
Um paraíso de moças de curvas sestrosas contrastando com dezenas de esculturas angulosas e arrevesadas que se manifestam como enigmas a serem decifrados.
A menina de braços elevados está ‘À Procura da Luz’ (Maria Martins, 1940). Luz que é fácil encontrar - nas primaveras e verões jorra farta nas manhãs paulistas, antigamente só depois da neblina.
A outra deidade fofa é uma ‘Carregadora de Perfumes’ (Victor Brecheret, 1924 - fundição 1998). A beldade rechonchuda já foi uma grande dama, participou do pomposo ‘Salon d’Automne’ de Paris, em 1924. Muita de sua carga de fragrâncias ainda hoje escapa de seus cântaros, e enche de aromas silvestres o bosque encantado.
As ‘Vênus Calipígias’ são recorrentes no acervo clássico, representam a deusa apreciando seu próprio bumbum, como se o avaliando. Um momento íntimo, mágico e comum. Afinal, quantas infinitas vezes as mulheres não fazem o mesmo diante dos espelhos?
‘Calipígia’ é uma palavra de origem grega, porém, a tradução em português fica especialmente bonita, eufônica e inspirada: ‘bela bunda’. Carregando ressonâncias africanas, essa paixão nacional foi decantada até por Carlos Drummond, no poema ‘A Bunda, que engraçada’.
Outra beldade de 'bunda bela' (portanto cidadã da ilhota) que enfeita a cidade é a indiazinha
apaixonada, concebida pela poeta Olavo Bilac e esculpida por William Zadig (1920). Sonhadoramente entretida no idílio de um beijo
eterno defronte à Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Não devem jamais movê-la, é embaixatriz da Ilhota, e merece
descansar onde está, protegida pelos estudantes e pelas tábuas da lei, depois
de ter sido mal falada, repudiada e expulsa de tantos lugares de S. Paulo.
Exatamente porque tinha a bundinha empinada e maliciosa.
Fonte: Paulistando, Blog |
(JA, Abr21)
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