Conjunto de 73 bronzes do impressionista francês ganha novas leituras ao ser retratado pela artista Sofia Borges
Uma fotografia cobre, de fora a fora,
a parede que abre a exposição do impressionista francês Edgar Degas em cartaz
no Masp agora. Nela, uma menina aparece de olhos fechados, o rosto coberto de
dourado. Sua expressão flutua entre a vulnerabilidade absoluta, e a
concentração de alguém que tenta, com todos os músculos do corpo, manter a
mesma posição.
Quem vê a imagem talvez não perceba
que ela pertence à escultura mais célebre de Degas, ‘Bailarina de 14 Anos’, associada, como tantas outras obras do artista, à
delicadeza, à feminilidade.
Mas o retrato cru, algo grotesco, que
a artista Sofia Borges fez da escultura talvez seja mais fiel à realidade das
bailarinas do século 19 do que aquela do nosso imaginário,
diz Fernando Oliva, à frente da exposição ao lado de Adriano Pedrosa, o diretor
artístico do museu.
Afinal, afirma Oliva, na época de
Degas as bailarinas eram meninas pobres, muitas delas filhas de mães solteiras.
Ficavam íntimas da dor desde cedo, entrando nas companhias aos seis anos de
idade.
Pior, viviam num limiar perigosamente próximo da prostituição, uma vez que dependiam do patrocínio de frequentadores da Opéra para se manter. Historiadores suspeitam, inclusive, que este tenha sido o destino da modelo de ‘Bailarina de 14 Anos’, Marie van Goethem.
Esse contexto fez com que a primeira
exibição pública da escultura, num salão oficial em 1881, fosse desastrosa. Oliva diz que a opção de Degas por
retratar uma menina pobre, da periferia parisiense, foi recebida com choque
pelo público, aristocrata como ele.
O escândalo foi tal que Degas nunca
mais expôs outra peça do tipo. Todas as outras 72 esculturas que compõem a mostra agora foram fundidas em bronze depois da
sua morte, a partir de moldes de cera encontrados no seu ateliê.
As peças integram o acervo do Masp,
todas compradas nos anos 1950. Só três outras instituições no
mundo têm séries completas como esta —o D'Orsay, em Paris; o Metropolitan, em
Nova York, e a Glyptoteket, em Copenhague.
Oliva afirma que a mostra, com outros
dois trabalhos de tinta pastel e uma pintura do acervo, reuniria outras 14 telas a óleo do artista, emprestadas por museus
internacionais. Mas a pandemia impediu o trânsito delas.
Mesmo assim, o conjunto de
esculturas, exposto pela última vez no museu há quase 15 anos, impressiona. Em bronze e medindo em média 50 centímetros, elas foram agrupadas em estantes de acordo com
temas —há bailarinas rodopiando, cavalos trotando, mulheres lavando, passando,
colhendo frutas e performando rituais de toalete que tinham acabado de surgir.
Oliva afirma que Degas era atraído
por essas ações porque elas não só permitiam estudar o movimento, como também
observar as mudanças sociais em curso na época, ‘mesmo que não fosse um
ativista’.
É esse olhar social sobre o impressionista
francês, aliás, que o museu pretende lançar com a exposição de agora –em parte
no catálogo, com lançamento em breve, que analisa aspectos controversos da
produção do artista, em geral negligenciados, e em parte por meio das
fotografias de Borges, exibidas nos cavaletes de vidro projetados por Lina Bo
Bardi, e intercaladas entre as estantes de esculturas.
Nelas, as bailarinas de Degas
aparecem iluminadas por luzes duras —na realidade, as próprias lâmpadas do
museu—, suas peles marcadas por sulcos. Algumas alongam braços, pernas, costas,
seus pedestais de bronze cortados da composição de modo a ‘registrar sua
potência dançante’, segundo Borges. Já a ‘Bailarina de 14 Anos’ aparece cercada
de sombras e vultos, efeito dos reflexos no seu invólucro de vidro.
O interesse museológico de Borges,
fotógrafa premiada, e uma das curadoras-artistas da última Bienal de São Paulo,
vem de longe. Por sete anos, ela explorou com suas lentes detalhes de pinturas,
objetos arqueológicos, animais empalhados, buscando entender uma relação entre
matéria, representação e imagem que, ela argumenta, é ainda mais complexa
nessas instituições.
‘Ali, um vaso representa o seu
próprio tempo, o artista que o fez, a distância entre ele e o tempo de hoje, um
povo inteiro. Ele parece ter uma espessura de significado, diferente da de um
vaso da minha casa.’
Nos últimos tempos, porém, ela passou
a nutrir um interesse pelo gesto —e, portanto, a dança.
Oliva, o curador, conta que percebia
que Borges usava a câmera para olhar para os bronzes de Degas. A fotógrafa
assente.
‘Não olho a coisa, mas a imagem da coisa.’
Fonte: Clara Balbi | FSP
(JA, Dez20)
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